domingo, 24 de abril de 2011

Quando ocorrem fatos como o assassinato em massa de crianças em escola do Rio de Janeiro, exaustivamente exposto pela mídia, surgem vários questionamentos relacionados aos motivos de tal ato insano, do por quê se atacar crianças, da falta de segurança nas escolas, etc. são muitas questões com poucas respostas práticas. O trabalho abaixo apresentado, publicado no site da FENAPEF - Federação Nacional dos Policiais Federais, traz considerações de ordem técnica de especialistas em segurança pública que mercem nossa observação e nos dão um panorama do que acontece nesses casos e de como agir. Vale conferir. 
O fenômeno dos homicídios em massa
com a participação do chamado “atirador ativo”
(“Press Release”)

Trabalho publicado no site da FENAPEF – Federação Nacional dos Policiais Federais. Em 13/abril/2011. http://www.fenapef.org.br/


 
    George Felipe de Lima Dantas
- Coordenador do Núcleo de Segurança Pública da Fundação Universa

Rodrigo Müller
- Especialista em Segurança Pública e Operações Especiais

(Brasília, 10 de abril de 2011)


 
"Está mais resguardado do perigo aquele que permanece vigilante, mesmo quando sente já estar seguro"
(Publilius Syrus – Roma, Século I AC)

     

INTRODUÇÃO

Ao que parece, a tragédia do assassinato de 11 crianças cariocas em sala de aula no bairro de Realengo, no dia 7 de abril de 2011, se abateu sobre a nação brasileira como uma grande comoção, passando em seguida a uma doída consternação, para finalmente dar lugar ao pesar. Tudo isso também, parece, deve levar a uma reflexão sobre o ocorrido, de maneira que seja possível começar a esboçar planos de controle de ocorrências de fenômenos semelhantes. Temas como vídeomonitoramento, controle de acessos e detecção de metais nas entradas de escolas estão entre as medidas preventivas possíveis.
           
Wellington Menezes de Oliveira (24 anos) assassinou 11 crianças (10 meninas e um menino) na manhã da quinta-feira, 7 de abril de 2011. Ele disparou contra elas em sala de aula, na Escola Municipal Tasso da Silveira situada no bairro de Realengo na cidade do Rio de Janeiro. Wellington era um ex-aluno da escola. Outras crianças ficaram feridas no episódio, sendo socorridas em hospitais próximos. O criminoso cometeu suicídio, logo após os assassinatos, depois de ser surpreendido e confrontado por um policial militar no interior da escola.

            Os assassinatos cometidos por Wellington podem ser classificados como “assassinatos em massa” ou “farra de assassinatos”, conforme a literatura criminológica anglo-saxônica dispõe sobre o tema. Pequenas sutilezas quanto ao local e ao lapso de tempo fazem a diferença entre um tipo e outro de definição. O modus operandi desse tipo de ocorrência é conceituado pelo Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos da América (United States Department of Homeland Security) e pela Associação Americana de Oficiais Táticos (National Tactical Officers Association) como “Incidente com Atirador Ativo” (Active Shooter Incident).
           
A sociedade brasileira já tinha notícia de ocorrências de assassinatos múltiplos como os do Rio de Janeiro em Realengo, mas não da sua incidência no próprio Brasil. A comoção produzida pelos acontecimentos na Escola Municipal Tasso da Silveira, entretanto, marca e inserção de uma nova expressão da violência aleatória com a qual os brasileiros passaram a ter contato direto. Ela não é novidade no restante do mundo, menos ainda nos Estados Unidos da América (EUA), China e Alemanha, países, dentre outros, onde já ocorreram vários casos semelhantes ao do Rio de Janeiro.
           
Conforme aponta a literatura criminológica, assassinatos como os de Realengo podem ocorrer sob a denominação de “farra ou folia” ou “assassinatos em massa”, quando ocorrem, respectivamente, (i) em diferentes locais e com pequena descontinuidade de tempo, ou (ii) em um único local e em uma única ocasião. Nesse escopo, parece que a tragédia do Rio de Janeiro seria classificável como um “assassinato em massa”. A forma encontrada pelo perpetrador para efetuar esses crimes encaixa-se na figura do “Atirador Ativo”, vez que, pela definição, ele seria “um indivíduo engajado em matar ou tentar matar pessoas em uma área populosa confinada -- em muitos casos, atiradores ativos usam armas de fogo e não existe um padrão ou método em sua seleção de vítimas”.
           
Outra tipologia de assassinatos múltiplos corresponde aos perpetrados pelos chamados “serial killers” (matadores seriais). Também conforme a literatura criminológica, tal modalidade de comportamento desviante fica caracterizado pela morte de várias vítimas em três ou mais eventos separados. Nesse caso, o lapso de tempo decorrido entre os eventos pode ser de dias, meses ou até mesmo anos.

            Os casos de “farra de assassinatos” (com eles ocorrendo em mais de um local)  e de “assassinatos em massa” (perpetrados em um único local) costumam estar listados juntamente na literatura criminológica. A diferença sutil entre eles, entretanto, parece estar no fato de que no primeiro caso o autor esteja em fuga, enquanto no segundo caso esteja disposto a ser flagrado e morto no transcurso do episódio. Tais ocorrências podem ser ou não caracterizadas como incidentes com “atiradores ativos”, uma vez que em muitos casos, o modus operandi pode variar.

            Exemplos norte-americanos de assassinatos em massa incluem o caso do “Atirador de Washington”, quando John Allen Muhammad e Lee Boyd, ao longo de três semanas de 2002, alvejaram 13 e mataram 10 pessoas na área metropolitana de Washington, D.C. (área que inclui as unidades federativas de Maryland, Virginia e Washington). Já o caso dos 33 assassinatos perpetrados por Seung-Hui Cho, em uma única ocasião em 2007, com incidência no campus do Instituto Politécnico do estado de Virginia (Virginia Tech) situado na cidade de Blacksburg, pode ser claramente rotulado como um “incidente de atirador ativo”. No caso, o criminoso tinha a intenção de matar o maior número de pessoas possível e em um mesmo único local. Ele não se importava se ao final tiraria sua própria vida ou seria neutralizado por forças policiais.

            Entre os “matadores seriais” mais famosos estão Jeffrey Dahmer (15 assassinatos espaçados ao longo de anos), Ted Bundy (várias vítimas femininas); Henry Lee Lucas (condenado por 11 crimes comprovados e autor confesso de cerca de 600 mortes); Charles Mason (sete vítimas) e; Andrei Chikatilo (52 vítimas, sendo a maioria delas crianças em idade escolar).
           
É preciso diferenciar também os homicídios cometidos com fundamento terrorista, sejam eles domésticos ou externos (incluindo os por motivação religiosa). Casos como os do atentado a bomba realizado por Timothy McVeigh na cidade de Oklahoma, estado de Oklahoma, em 1995, são claros exemplos de terrorismo doméstico, enquanto as mais de três mil mortes resultantes do atentado liderado por Mohammed Atta contra as chamadas “Torres Gêmeas” da cidade de Nova Iorque em 11 de setembro de 2001 correspondem a um exemplo de terrorismo externo. Os atuais carros bomba no Iraque, que massacram grupos religiosos muçulmanos como o xiitas, perpetrados por extremistas sunitas, também muçulmanos, estão entre os exemplos de terrorismo religioso. Os assassinatos em massa com ocorrência no México, cometidos por agentes dos Cartéis de Traficantes (em constante embate com as autoridades locais) tem cunho estritamente criminoso. Não são classificáveis como “Incidentes com Atiradores Ativos”.

            O “EFEITO COPYCAT”

Uma possibilidade pós-incidente de Realengo é a replicação do incidente com o chamado “copycat”. A expressão inglesa resulta da justaposição da palavra “copy”, que significa cópia, seguida da palavra “cat”, que designa gato. Ela tem sua origem no fato de que os filhotes de gatos tendem a imitar, todos juntos, o comportamento da mãe. Assim, a expressão se refere, indiretamente, às manifestações da tendência animal de reproduzir comportamentos modelados de outros indivíduos, tendência essa jocosamente representada também pelo bordão “monkey see, monkey do” (o que o macaco vê – o macaco faz).

            O “Efeito Copycat” tem sido sistematicamente apontado na literatura criminológica, sempre que a ocorrência de um determinado delito “dispara” uma onda de ocorrências ou fatos similares. O fenômeno parece ser típico, por exemplo, quando acontecem suicídios ou homicídios de grande repercussão pública. Assim, a publicidade sensacionalista sobre um suicídio ou homicídio pode fazer com que, logo em seguida, aconteçam outras ocorrências da mesma natureza.

            Na verdade, o “copycat” de Realengo pode já ter acontecido. Um “atirador ativo” abriu fogo em um shopping center lotado na cidade holandesa de Alphen aan Den Rij, no dia 10 de abril. No episódio morreram cinco pessoas, com 13 saindo feridas. O autor dos assassinatos, Tristan van der Vlis, cometeu suicídio logo em seguida.
           
As similaridades entre os casos do Rio de Janeiro e de Alphen aan Den Rij incluem a idade dos dois homicidas, ambos com 24 anos; a utilização de armas de fácil obtenção (revólveres no caso de Realengo e pistolas no caso holandês); a escolha de um local com grande concentração de vítimas potenciais (uma escola em Realengo e um Shopping Center na Holanda); a decisão do criminoso pelo suicídio (ambos efetuaram disparo contra a cabeça). É de supor que a ampla divulgação internacional do incidente de Realengo possa ter servido de “gatilho” para ativar as motivações do holandês em cometer um delito similar.

            PADRÕES EM COMUM – O “ATIRADOR ATIVO”

Algumas características estão comumente associadas aos “atiradores ativos” e seus incidentes. Elas podem ser determinadas pela análise de casos já ocorridos, ainda que não possam ser tratadas como restritivas, uma vez que cada novo incidente é único e pode revelar novas características:

1)           Os “atiradores ativos” usualmente focam em vítimas com as quais já tiveram algum contato. Muitas vezes essas vítimas são pessoas em relação às quais o atirador nutre sentimentos de ódio, raiva ou vingança. O ato de cometer os assassinatos alivia o assassino desses sentimentos;

2)           Um “atirador ativo” normalmente engaja em mais de um alvo. Eles têm a intenção deliberada de matar o maior número de pessoas no mais rápido espaço de tempo possível;

3)           Geralmente, os atos preparatórios do “atirador ativo” não são detectados e a sua presença no ambiente do crime só é detectada quando ele inicia a seqüência de assassinatos;

4)           “Atiradores ativos” escolhem locais onde podem encontrar um grande número de vítimas concentradas, como escolas, teatros ou shoppings centers;

5)           Podem utilizar técnicas de tiro de longa distância (atuando como snipers), alvejando e matando as vítimas desde pontos remotos. Podem também engajar vários “alvos” ao mesmo tempo, mesmo que eles estejam em movimento;

6)           Táticas de gerenciamento de crise e negociação, normalmente associadas ao procedimento de isolar/conter/negociar não são adequadas a incidentes com “atiradores ativos”. Eles normalmente continuam seus ataques, ignorando esforços de negociadores;

7)           “Atiradores ativos” estão sempre bem armados. Muitas vezes estão mais bem armados do que membros de forças policiais comuns, portando, além de armas de fogo, artefatos explosivos, armadilhas e mesmo instrumentos de bloqueio de entradas, portas e corredores;

8)           Normalmente planejam seus ataques com bastante antecipação, detalhando um planejamento de forma a sustentar o fogo contra forças policiais que eventualmente atendam a ocorrência. Historicamente os atiradores ativos não se preocupam em esconder sua identidade ou a natureza e motivos do seu ataque. Escapar da polícia não é uma prioridade no planejamento.

9)           Atiradores ativos empregam a violência de forma indiscriminada (aleatória ou randômica) e podem engajar alvos específicos ou não;

10)        Eles freqüentemente são suicidas, decidindo morrer no curso de suas ações através ferimentos auto infligidos. Alguns buscam ser neutralizados pelas forças policiais (“suicide by cop”);

11)        Normalmente possuem algum grau de familiaridade com o local escolhido para consecução do incidente;

12)        As ocorrências com “atiradores ativos” não podem ser tratadas como ocorrências de suspeitos embarricados ou ocorrências com reféns, pois sendo um incidente de características dinâmicas, de alto risco às pessoas envolvidas, qualquer atraso na intervenção policial aumentará o número de vítimas.

PADRÕES EM COMUM – QUASE UM SÉCULO DE ASSASSINATOS EM ESTABELECIMENTOS ESCOLARES

            Analisando 44 incidentes,            entre 1913 e 2011, com as características de assassinato em massa, farra de assassinatos ou ações de atiradores ativos em estabelecimentos escolares, podem ser analisados e determinados alguns padrões nas bases de dados.

            Análise quanto ao número de vítimas:
            A média do número de vítimas nos 44 episódios entre os anos de 1913 a 2011 foi de oito indivíduos. O número mais frequente de vítimas (número modal) é de cinco vítimas, variando de um número mínimo de uma vítima, até 44 vítimas.

            Análise quanto à idade do perpetrador:
            A média de idade dos perpetradores nos 44 incidentes entre 1913 e 2011 é de 26 anos. A idade mais freqüente (modal) é de 17 anos, variando de um mínimo de 11 a um máximo de 55 anos. Em 68,8% dos casos a idade do perpetrador variava de 15 a 37 anos.

            Análise quanto ao resultado do incidente em relação ao perpetrador:
            Em 22 casos (50% dos casos analisados) o perpetrador comete suicídio. Em cinco casos (11% dos casos estudados) a referência ao destino do criminoso é ambígua, sendo informado apenas ter sido preso pelas autoridades policiais. Em outros cinco casos (11% dos casos examinados) o delinqüente foi sentenciado à pena capital e executado. Em três casos (7% dos casos analisados) o perpetrador foi julgado como insano, não sendo responsabilizado por seus atos.

            Análise quanto ao país de ocorrência dos incidentes:
            Em 14 casos (por volta de 32% dos casos analisados) a ocorrência se deu nos Estados Unidos da América. Em nove casos (cerca de 20% dos casos estudados) a ocorrência foi na China. Em seis casos (aproximadamente 14% dos casos examinados) os incidentes ocorreram na Alemanha. Em cinco casos (aproximadamente 11% dos casos estudados) a ocorrência foi no Canadá. Entre os países com dois ou menos casos estão a Finlândia, Japão, Israel, Hong Kong, Iêmen, Rússia, Bélgica, Polônia, Guatemala e Brasil. 

            O gráfico abaixo apresenta a relação entre o número de vítimas e o número de ocorrências de incidentes em uma evolução cronológica. O alto número de ocorrências havidas nas décadas de 1991/2000 e de 2001/2010 coincide com o surgimento da internet e o fácil acesso à informação, o que pode sugerir que o fenômeno do copycat tenha sido intensificado.
  

            CONCLUSÃO: A PREVENÇÃO COM PROCEDIMENTOS PRÉ-ESTABELECIDOS

Identificar as motivações de um “atirador ativo”, em meio a potenciais indivíduos com patologias comportamentais latentes, não parece possibilitar uma prevenção efetiva. O que parece minimamente efetivo e necessário é prover um treinamento específico, tanto da comunidade escolar quanto dos profissionais de segurança pública.

            A “resposta” em casos de incidentes com “atiradores ativos” envolve reações rápidas das autoridades. Tipicamente, a chegada rápida de forças da lei é necessária para deter o atirador e impedir que ele faça mais vítimas. Esses incidentes normalmente duram entre 10 a 15 minutos e os primeiros policiais em cena devem estar preparados técnica, física e mentalmente para a ação.              A literatura técnica aponta as seguintes recomendações para os envolvidos em um incidente com atirador ativo:

1)    Evacuar:
·                    Se houver uma rota acessível de fuga, estar certo de ter um plano em mente;
·                    Deixar os pertences para trás, não se preocupando em retirá-los no momento do transcurso do incidente;
·                    Se for possível, ajudar outros a escaparem;
·                    Alertar as pessoas, ao conseguir sair da área de risco, sobre a presença do atirador;
·                    Manter as mãos visíveis quando do encontro com policiais durante o trajeto, informando a posição do atirador se dela tiver conhecimento;
·                    Não tentar mover os feridos;
·                    Ligar para o 190 assim que possível.

2)    Esconder-se:
·                    Se evacuar o ambiente não for possível, encontrar um lugar para esconder-se;
·                    Manter-se fora da visão do atirador. Ele se dirigirá aos alvos que considerar mais próximos;
·                    Se conseguir chegar a uma sala segura, trancar a porta, bloqueando-a com os móveis mais pesados existentes no local.

            As recomendações aos primeiros policiais em cena são basicamente as seguintes:
·                    Não adentrar sozinho o ambiente confinado. A menor fração tática de emprego policial é a dupla;
·                    Se mais de uma dupla policial estiver disponível, o grupo inteiro deverá ser dividido em equipes de intervenção e de resgate;
·                    Enquanto a equipe de intervenção for verificando os ambientes, a equipe de resgate irá isolando a área, extraindo e socorrendo as vítimas;
·                    A equipe de intervenção reconhecerá e identificará os sons de disparos, após o que deverá partir imediatamente para o local de onde os disparos estão vindo, redobrando a segurança e preparando-se para um possível contato com o atirador com o fito de neutralizar suas ações.

            A busca de soluções para o controle desse tipo de incidente, além do treinamento específico e contínuo, envolve a criação pelas autoridades policiais de um “plano de emergência ou procedimento operacional padrão”.

A preparação para o manejo futuro dessas situações inclui a realização de palestras de esclarecimento nas escolas, buscando assim aproximar ainda mais a comunidade da polícia e apresentar à comunidade escolar procedimentos e instrumentos de capacitação de discentes e docentes, visando conhecer, compreender e aplicar procedimentos pré-determinados para situações de crise similares que eventualmente possam ocorrer no futuro.



NOVOS ESTUDOS DO INCOR SOBRE A RELAÇÃO TRIGLICERÍDIOS, HDL E HLDL COM ATEROSCLEROSE E OBSTRUÇÃO CORONARIANA.

CARDIOLOGIA - AS RELAÇÕES ENTRE O BOM E O MAU

Há cerca de quatro anos uma série de mortes por problemas cardíacos intrigou a equipe da Unidade de Aterosclerose do Instituto do Coração (InCor), ligado à Universidade de São Paulo. Em todos esses casos o coração havia parado de bater porque as artérias que levam oxigênio e nutrientes até esse órgão estavam obstruídas por placas de gordura, impedindo a passagem de sangue. Um ponto em especial atraiu a atenção dos médicos: das 51 pessoas que morreram em decorrência da aterosclerose - o acúmulo de gordura na parede das artérias -, 25 não apresentavam um dos principais sinais desse problema, já que os níveis de colesterol no sangue eram considerados saudáveis. A equipe chefiada pelo cardiologista Protásio Lemos da Luz decidiu então investigar a composição das placas de aterosclerose e, diferentemente do esperado, constatou que tanto em pacientes com colesterol alto quanto nas pessoas com taxas dentro dos níveis normais a quantidade de gordura na parede das artérias coronárias era a mesma.

O resultado desse estudo, conduzido por Délio Braz Junior, ajuda a redefinir a importância de um dos testes mais usados pelos médicos para determinar o risco de uma pessoa desenvolver aterosclerose, causa mais comum de doenças cardíacas como o infarto ou de problemas vasculares, a exemplo do acidente vascular cerebral, que matam a cada ano cerca de 17 milhões de pessoas no mundo, 300 mil delas no Brasil. "A doença se desenvolve independentemente dos níveis de colesterol", afirma Braz Junior. Protásio completa: "A premissa anterior era que quanto mais elevado o nível de colesterol no sangue, mais gordura deveria haver na parede das artérias coronárias".

Inflamação vascular

Mas não foi o que encontraram. O trabalho da equipe do InCor sugere que o colesterol é decisivo na formação da placa, porém há outros fatores que pesam nesse processo. Um deles - pouco considerado pelos médicos até então - é a concentração elevada no sangue de uma proteína chamada homocisteína, que o grupo demonstrou estar relacionada também ao desenvolvimento da aterosclerose. Ao analisar 236 pessoas atendidas no InCor, o cardiologistaJosé Rocha Faria Neto, hoje na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, verificou que o nível de homocisteína no sangue era mais alto entre os indivíduos com placas de gordura nas coronárias que entre aqueles com o coração saudável, como já haviam sugerido outras pesquisas.

Faria Neto descobriu também que quanto maior a taxa de homocisteína - o normal é entre 5 e 15 micromols por litro de sangue - mais comprometidas estavam as artérias coronárias. É que a concentração elevada de homocisteína altera o endotélio e, conseqüentemente, lesa os vasos sangüíneos, provocando o surgimento de uma inflamação e favorecendo a formação das placas gordurosas.

Protásio alerta: "Esse não é um fator de risco clássico, mas pode desencadear ou agravar a doença coronariana". Com base nesses resultados, a determinação da taxa de homocisteína começa aos poucos a integrar os rotineiros exames cardiovasculares, ao lado dos testes dos níveis sangüíneos de outras proteínas como a apolipoproteína B e a proteína C reativa, também associadas à inflamação. É que estudos realizados na última década sugerem que uma inflamação disseminada nos vasos sangüíneos acelera a formação de placas de gorduras no interior de veias e artérias.

O novo achado da equipe do InCor tem importância prática: indica que, se uma pessoa não apresentar os fatores de risco típicos da doença, vale a pena verificar suas taxas de homocisteína. O tratamento é simples: 5 miligramas diários de uma vitamina do complexo B chamada ácido fólico são suficientes para baixar a taxa de homocisteína para valores próximos aos normais e restaurar a capacidade de as artérias se dilatarem. Essas descobertas levaram a equipe a reavaliar o peso dos fatores de risco considerados clássicos para a formação das placas gordurosas - entre eles colesterol alto, hipertensão arterial, sedentarismo, tabagismo, obesidade e diabetes - e a buscar formas não-invasivas de detectar precocemente e tratar as doenças das artérias do coração.

"A prevenção da aterosclerose é baseada no combate a esses fatores de risco. Só que 35% das pessoas com doença das artérias coronárias não apresentam nenhum deles, por isso precisávamos entender quais outros mecanismos estão envolvidos", explica Protásio, cujo livro Endotélio e doenças cardiovasculares, assinado em conjunto com Rafael Laurindo e Antonio Carlos Chagas, recebeu o Prêmio Jabuti 2004, instituído pela Câmara Brasileira do Livro, na categoria Ciências Naturais e da Saúde.

Se alguns fatores passaram a ser relativizados, outros ganharam importância. A simples diminuição dos níveis de HDL (lipoproteína de alta densidade) - o colesterol bom, como também é chamado - já é suficiente para disparar o sinal de alerta do organismo e induzir a formação das placas de gordura características da aterosclerose. A HDL não participa do processo de entupimento das artérias e, na verdade, protege o coração contra a doença. Em quantidades normais (acima de 40 miligramas por decilitro de sangue), essas lipoproteínas impedem a lenta e silenciosa invasão das gorduras, pois retiram o colesterol do sangue e o levam para o fígado, onde é eliminado ou reaproveitado. Em quantidades reduzidas, no entanto, seu efeito protetor diminui, como atesta a pesquisa realizada por Carlos Magalhães, Antonio Carlos Chagas e Desiderio Favarato, sob a coordenação de Protásio, diretor da Unidade de Aterosclerose do InCor.

Durante seis anos e três meses, 165 pessoas com entupimento parcial das coronárias (insuficiência coronariana) submetidas à cirurgia no InCor para colocação de ponte de safena foram acompanhadas pela equipe e divididas em dois grupos. O que os diferenciava era a taxa de HDL. O colesterol bom estava abaixo de 35 miligramas por decilitro (mg/dL) de sangue em 101 homens e mulheres, e acima desse valor em 64 pessoas operadas.

Após esse período, 20,7% das pessoas com HDL inferior a 35 mg/dL haviam morrido, ante 6,25% do segundo grupo. Entre todos os fatores de risco avaliados - diabetes, hipertensão arterial, triglicérides alterado, tabagismo e taxa de colesterol -, o nível baixo de HDL foi o único capaz de predizer se uma pessoa com aterosclerose tinha chance maior ou menor de sobreviver. Sinal de que a HDL em quantidades reduzidas merecia mais atenção do que vinha recebendo.

Um outro achado - resultado da avaliação de 494 pessoas submetidas à operação no InCor - fornece mais uma boa razão para os médicos reverem suas rotinas em consultórios e hospitais: a relação entre triglicérides e HDL. Alguns estudos indicavam que quanto mais elevada a taxa de triglicérides e mais reduzido o nível do bom colesterol, maior a probabilidade de desenvolver aterosclerose. Ao avaliar esses 494 pacientes, a equipe de Protásio verificou que essa relação é eficiente, em especial, para indicar o risco de desenvolver a doença precocemente, por volta dos 50 anos.

Relação perigosa

A conta é simples: ao dividir os valores considerados normais de triglicérides (150 mg/dL) pelos de HDL (40 mg/dL) se obtém o número 3,75 - o resultado desse cálculo é a chamada relação triglicérides/HDL, atualmente utilizada na avaliação dos pacientes da Unidade de Aterosclerose. Não é preciso entender de matemática para saber que quando a concentração dos triglicérides aumenta ou a da HDL diminui ou ambos ocorrem ao mesmo tempo o resultado da divisão também cresce. E junto com ele cresce o risco de desenvolver aterosclerose. Os pesquisadores do InCor constataram ainda que existe uma proporção direta entre a relação triglicérides/HDL e a extensão da placa de gordura nas artérias do coração: quanto maior o valor da relação, mais grave o dano às coronárias, principalmente entre as pessoas com menos de 60 anos.

O bom colesterol teria então se tornado um vilão nessa história? Na verdade, não. Mesmo em níveis baixos, a HDL continua a extrair a gordura do sangue. O problema é que se torna insuficiente a coleta das substâncias gordurosas não utilizadas pelas células para a formação de hormônios, ácidos biliares e vitamina D. E, assim como os alimentos que consumimos, a gordura também tem prazo de validade. Quando circula por muito tempo no sangue, torna-se velha e mais propensa a aderir nas veias e artérias.

Questão de nível

Ao perceber o quanto o nível baixo de HDL foi capaz de interferir na capacidade de sobrevivência de 101 pessoas que haviam recebido o implante de pontes de safena, cirurgia destinada a restabelecer a irrigação sangüínea do coração, a equipe do InCor levantou uma nova hipótese: em quantidade baixa, o colesterol bom poderia favorecer o surgimento de alterações no endotélio e o desenvolvimento da aterosclerose. Dito e feito. Novamente foi possível comprovar que basta apenas ter o colesterol bom em quantidades inadequadas - problema que afeta de 4% a 8% da população - para que a doença se desenvolva ou sua evolução seja mais desfavorável. E, dessa vez, as pessoas avaliadas não apresentavam nenhum outro fator de risco associado à aterosclerose.

Em seu doutorado, Alexandre Benjó mostra que pessoas com o nível de HDL abaixo de 40 mg/dL de sangue apresentam menor capacidade de dilatação dos vasos sangüíneos.Utilizando ultra-som, ele avaliou a variação do diâmetro da artéria do braço de 30 pessoas com taxa reduzida do colesterol bom e comparou com a de 11 indivíduos saudáveis. Constatou que a dilatação da artéria foi inferior ao normal (8% ou mais) em 22 das 30 pessoas que tinham nível baixo de HDL, sinal de que o endotélio estava alterado.

A taxa baixa dessa lipoproteína também torna mais demorada a remoção de um tipo de gordura conhecida por quilomícron - essa partícula dá origem, em parte, ao colesterol e seu excesso no sangue facilita a formação das placas características da aterosclerose. Para entender esse mecanismo, os pesquisadores introduziram no plasma sangüíneo uma partícula artificial de quilomícron, desenvolvida por Raul Maranhão, chefe do setor de lípides do InCor, e observaram a retirada de triglicérides e de colesterol.Diante da constatação de que a quantidade pequena de HDL estava associada à alteração no endotélio e à retirada mais lenta dos quilomícrons excedentes no sangue, decidiram testar um tratamento à base de uma vitamina do complexo B chamada niacina - já utilizada com o objetivo de aumentar as taxas do colesterol bom, porém sem muita comprovação. Ao longo de três meses, metade das 22 pessoas que apresentavam nível baixo de HDL recebeu doses diárias de 1,5 grama da vitamina liberada lentamente no organismo - um dos efeitos indesejáveis da terapia atual com niacina, ou ácido nicotínico, é a vermelhidão causada na pele - e a outra metade foi medicada com placebo.

Não houve melhora no grupo que recebeu placebo, mas a disfunção no endotélio foi corrigida com o uso da niacina, embora a ação sobre a HDL tenha sido mínima. A vitamina também não provocou mudanças significativas na remoção de quilomícrons. "As pessoas tomam niacina esperando que a HDL suba, no entanto não existe uma demonstração clara do efeito sobre os vasos sangüíneos", conta Protásio. "Mostramos que a vitamina melhora a capacidade de dilatação das artérias, mesmo sem aumentar a HDL." Os resultados não permitem ainda à equipe afirmar que a melhora no funcionamento do endotélio basta para diminuir o risco de doenças cardiovasculares. Mas os pesquisadores imaginam que, no longo prazo, o efeito seja benéfico.

A confirmação de que fatores de risco tradicionais nem sempre serviam para indicar os danos nas artérias motivou a equipe do InCor a investigar alternativas mais eficientes e, se possível, menos incômodas que a técnica mais usada atualmente: o cateterismo, que consiste em inserir um tubo plástico no interior do vaso sangüíneo para avaliar seu diâmetro. Em outro estudo, Paulo Bertini analisou a eficácia da ressonância magnética para identificar sinais da aterosclerose nas artérias do coração. Capaz de produzir imagens dos órgãos internos do corpo sem o expor a doses elevadas de radiação, a ressonância não é invasiva e permite medir tanto o calibre interno como a espessura da parede das coronárias.

Ao comparar as coronárias de sete pessoas saudáveis com as de 23 indivíduos com aterosclerose, Bertini observou que a parede das artérias eram bem mais espessas e rígidas entre os membros do segundo grupo, como revela estudo a ser publicado no Brazilian Journal of Medical and Biological Research. Mais importante: as imagens de ressonância magnética mostraram que essas alterações nas paredes do vaso, nem sempre identificadas no cateterismo e na cinecoronariografia, surgem antes mesmo de as placas de gordura se formarem e atrapalharem a passagem do sangue.

"Essa técnica pode auxiliar na identificação do problema em uma fase bastante inicial", explica o coordenador do grupo, "quando o paciente ainda não apresenta sinais clínicos de insuficiência coronária como dor no peito". Na tentativa de identificar os exames mais eficazes e menos incômodos, a equipe do InCor avalia atualmente a eficiência da tomografia computadorizada de múltiplos cortes, técnica capaz de detectar a presença de cálcio nas placas de gordura, uma indicação de que a aterosclerose já se instalou e começa a avançar. "A detecção precoce permitiria frear a evolução da aterosclerose e evitar suas conseqüências mais graves, como o infarto", diz Protásio.

A uva e o vinho

A mais nova aposta da equipe do InCor para proteger o coração é o suco de uva, rico em flavonóides. Assim como a niacina, o suco também foi capaz de melhorar a capacidade de dilatação das artérias. Já se sabia que os flavonóides - encontrados na casca da uva, no vinho tinto, no chocolate, em chás, castanhas, frutas e verduras verde-escuras como o agrião - fazem bem porque favorecem a produção de óxido nítrico, que aumenta a dilatação de veias e artérias, e também reduzem a produção de endotelina, substância no endotélio capaz de diminuir o calibre dos vasos sangüíneos e induzir a formação das placas de gordura na parede das artérias, como detalham Protásio e Silmara Regina Coimbra em um artigo publicado no Brazilian Journal of Medical and Biological Research em setembro de 2004.

O que um estudo conduzido por Silmara comparando a ingestão de vinho tinto e suco de uva demonstrou agora é que o efeito benéfico sobre o endotélio se deve aos flavonóides da própria fruta, e não apenas no componente alcoólico da bebida. Ela separou em dois grupos 16 pessoas com nível elevado de colesterol e sem nenhum outro fator de risco. O primeiro recebeu, ao longo de duas semanas, 250 mililitros de vinho tinto por dia. Depois de outras duas semanas, nas quais não foi submetido a tratamento, esse grupo tomou diariamente 500 mililitros de suco de uva por mais 14 dias. O mesmo aconteceu com as demais pessoas que começaram ingerindo suco de uva e depois passaram a consumir vinho tinto. Em todos os casos, mediu-se a dilatação da artéria do braço por meio de ultra-som.

Função restaurada

Resultado: os níveis de colesterol continuaram iguais, mas ainda assim a função do endotélio foi restabelecida. "Esse resultado é especialmente relevante para as pessoas às quais se desaconselha até mesmo a ingestão moderada de álcool, como aquelas com arritmia (alterações no ritmo de batimento do coração) ou insuficiência cardíaca (quando o coração perde a capacidade de bombear sangue com eficiência)", afirma Silmara. O curto período de observação, porém, não permite à equipe da Unidade de Aterosclerose assegurar se os benefícios persistirão no futuro. Os resultados animadores da ingestão do suco de uva e do vinho tinto já haviam sido observados por Protásio em coelhos submetidos à dieta rica em gordura: por serem herbívoros, esses animais não têm como digerir gorduras, que se acumulam facilmente nos vasos sangüíneos. Ao final de três meses, a placa de gordura ocupava 69% da área total da artéria aorta dos animais tratados com a dieta gordurosa e água. A placa se estendeu por 47% da aorta dos coelhos que consumiram essa mesma ração e em vez de água beberam suco de uva. E foi ainda menor entre os animais que receberam vinho: atingiu 38% da área desse vaso sangüíneo. Adepta de soluções simples e eficientes, a equipe do InCor segue em busca de formas de detectar a aterosclerose o mais cedo possível, a tempo de evitar conseqüências graves como o infarto.